sábado, 8 de fevereiro de 2014

A menina que mora em mim.


"Sonhar é uma imitação do voo. Só o verso alcança a harmonia que supera os 
contrários - a condição de sermos terra e a aspiração do eterno etéreo." Mia Couto


Dentro de mim mora uma menina. A menina que mora em mim ainda olha para o céu, à noite, e faz pedidos quando vê estrelas cadentes. Se encanta com as fases da lua. Debruçada na janela, confessa à madrugada todos os seus desejos. Tem os mais lindos sonhos... quiçá, futuro. Mas não basta sonhar. Ela quer ser sonho. Faz de cada amanhecer uma oportunidade. Ao acordar, veste sua roupa de viver... e não deixa, na cama, os sonhos. Pinta com as cores mais bonitas a luz do novo dia. Abre portas e janelas como o sol abre o dia. Faz história. Lê histórias. Transforma livros em fragatas. Viaja. Ela ama as palavras... e, com o óleo da paciência, unge cada uma delas. Uma menina corajosa, ousada, forte... eu sou timidez e fragilidade. Cultiva, na alma, um lindo e perfumado jasmineiro. Carrega nas mãos o perfume das flores. Sobe nas árvores mais altas... e, quando cai, os olhos permanecem no céu. É nesse Azul que ela mergulha. Cheia de fé, segue em frente. Tenta. Recomeça. Se eu caio, fico no chão, esperando que ela me levante. Ela não tem medo. O medo é um departamento meu. A função de desacreditar, também. Ela tem a linda mania de ter esperança, de acreditar na vida, nas pessoas, nos sentimentos. Quanto a mim, às vezes, eu queria que a minha vida fosse um carro de bois... assim eu não precisaria ter esperança, apenas rodas - Como disse Fernando Pessoa em um de seus heterônimos.

Às vezes, ela fecha os olhos para ver. Seus olhos veem muito além. Enquanto os meus olhos, abertos, não veem nada. Ela cala para ouvir. Eu quero ser ouvida. Eu mantenho os meus pés no chão, mas ela tem asas. Com meus pés, junto andanças. Com suas asas, ela alcança horizontes. Encontra em cada vento um impulso para voar. Gosta de banho de rio, de mar, de chuva... Pesca, semeia, cultiva, colhe, acolhe.

Ela dança, canta. Encanta. Sempre encontra uma razão para sorrir, porque a vida assim tem mais sabor; porque a felicidade está na doçura de um abraço. Faz dos abraços um encontro perfeito. Assim é possível ter um coração no lado direito do peito. Ser o motivo de um sorriso é sinônimo de felicidade. Eu sofro por tudo e por nada. Ela vive intensamente as alegrias. Faz sorrisos, faz sol, faz dia... Eu nublo, faço chuva, anoiteço. Ela é serena. Eu sou inquieta. Sua serenidade tem mãos suaves. Minha ansiedade tem pés ligeiros. Ela reza, eu rezo. Rezamos. E nos contrários nos entendemos.

Ela não quer o pote de ouro, ela quer o arco-íris. Eu quero a oitava cor. Para ela, o amor é sagrado e, assim como a fé, tira as montanhas de seus lugares. E move todo o céu. Quer ser chama. Quer ser círio. Ser o eterno círio de um coração é o que ela espera da alegria. Segurar uma mão é tudo o que ela espera na caminhada... porque de mãos dadas as paisagens ficam mais bonitas, porque dar de si, é o ápice da caridade, do amor, da amizade.

As qualidades são dela. Os defeitos são meus. Um deles é, vez em quando, esquecer de acordá-la. Há dias assim. De repente, olho para o meu corpo, vejo as roupas antigas, sem cores e percebo que nesse dia me vesti sozinha. Ela estava dormindo. Os dias mais alegres são aqueles em que tomo de empréstimo as suas roupas, são aqueles em que ela faz trança em meus cabelos e me perfuma com jasmim. Com ela o dia é canção, é força, é porta aberta. Se a não ouço, os tropeços são fáceis.

Cuidadora das minhas imperfeições. Cuidadora de mim. Vou aprendendo com ela... a menina que mora em mim. Ora caminha comigo, ora voo com ela. Os quereres são nossos. Uma partilha de aspirações.

Sem ela, nada sou. Sem mim, ela dormiria por toda a vida. Enquanto ela viver, viverei... viveremos.