domingo, 23 de novembro de 2014

Um amor para recordar




Largo dos Amores  - Praça Gonçalves Dias

o século XIX, São Luís foi o cenário de uma grande história de amor. Um verdadeiro amor. Do tipo de amor que atravessa a vida inteira e vai além. Gonçalves Dias e Ana Amélia  viveram uma dolorosa historia de amor. Um amor correspondido, mas irrealizado. Muito amor e algumas possibilidades não exploradas. Ou, talvez, tenha faltado uma boa dose de coragem para ultrapassar os obstáculos?

Gonçalves Dias, filho de um comerciante português e uma brasileira mestiça. Ele tinha orgulho de carregar o sangue de bravas gentes. Descendia de negros, índios e brancos. Dedicou-se intensamente aos estudos. Estudou latim, francês e concluiu o curso de Direito na Europa, em Portugal. Sentindo-se longe de casa, de sua terra tão querida e vivenciando o Romantismo, escreveu a “Canção do Exilio”, entre outros tantos poemas: (...) “Não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, onde canta o Sabia”. Quanto sentimento há nesse poema, quanta saudade! Pouco tempo depois de sua graduação, voltou para o Brasil. O Rio de Janeiro foi sua morada, onde exerceu os ofícios de professor, jornalista, advogado, teatrólogo e outras funções públicas. Um homem inteligente, cheio de predicados.

Em São Luís, entre idas e vindas, viu Ana Amélia pela primeira vez. Encantou-se com sua doçura, sua meninice... Uma menina que guardava o rosto da mulher a quem ele amaria por toda a vida. Gonçalves Dias voltou para o Rio e os muitos compromissos fizeram adormecer o encanto que sentira. Cinco anos depois, por motivo de trabalho, voltou ao Maranhão e reencontrou Ana Amélia. A menina se  tornara uma bela mulher. Em seus olhos, ainda havia o brilho que encantara Gonçalves Dias. O encanto transformou-se em paixão. E inesperadamente o amor chegou.

N esse tempo, as mulheres não tinham nenhuma liberdade. Nem mesmo para os estudos.  Quase sempre tinham aulas em casa. As moças de famílias ricas, além das aulas de francês e piano, aprendiam a ler e escrever. E desde muito cedo, eram ensinadas sobre a maternidade e o papel de esposa, pois no início da adolescência preparavam-se para casar. Seus espaços de convivência social resumiam-se às missas dominicais. Era o momento mais esperado. Um momento de encontro, onde as mulheres tinham a sua hora de “liberdade”. Perfumadas e sempre com seus vestidos até os pés, lindos chapéus, flores, rendas... Tinham a intenção de impressionar. A proximidade permitia os olhares, as conversinhas discretas ao pé do ouvido e a troca de bilhetes. Além das missas, restavam as sacadas de janelas. Os rapazes passavam e acenavam. Assim, os amores aconteceram. Assim, aconteceu com Gonçalves Dias e Ana Amélia. Durante o tempo em que ficou no Maranhão, eles namoraram às escondidas. Sem dúvida, a formalidade dos namoros arranjados era muito menor do que o desejo de estarem juntos. Dos encontros, do desejo e do amor nasceram lindos poemas. No poema, “Seus olhos”, traduziu todo o encanto que sentira no olhar de sua amada: Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,  de vivo fulgor; seus olhos que exprimem tão doce harmonia, que falam de amores com tanta poesia, com tanto pudor”. Ana Amélia não imaginava mais a vida sem ele, sem o seu amor, sem os seus poemas. Gonçalves Dias partilhava do mesmo sentimento. Queriam uma vida juntos. A família de Ana Amélia tinha muita admiração pelo poeta e, ele, confiante de que daria tudo certo, decidiu pedir permissão para casar-se com ela. Para sua surpresa, a família negou fortemente o seu pedido. Apesar da grande estima, o preconceito falou mais alto. Triste preconceito. Não queriam que ela tivesse um marido mestiço. Eles tinham outros planos para Ana Amélia. Não é difícil imaginar o tamanho da tristeza que os invadiu. Ana Amélia estava disposta a fugir com Gonçalves Dias, mas ele, prezando por sua moral, por respeito à sua família, partiu para o Rio de Janeiro, sozinho, frustrado... de coração partido. Em seguida, conheceu Olímpia, com quem se casou. Olímpia foi a mulher que o ajudou a atravessar os anos. E em São Luís, Ana Amélia, sentindo-se rejeitada e duplamente magoada por ele não tê-la desposado, seguiu o mesmo caminho. Casou-se, carregando o fardo de não ter ao seu lado o homem amado. Certa vez, em uma viagem a Portugal – não sei se por destino ou coincidência – se reencontraram. A dor e o sofrimento, estampados nos olhos de Ana Amélia, encheram de arrependimento o coração de Gonçalves Dias. Sentia-se culpado por não ter ousado fazer o que sua amada pedira. Seu sofrimento havia multiplicado nesse momento. Desse encontro nasceu o poema “Ainda uma vez – Adeus!”:

(...) Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar! 
(...)

Com o acúmulo das viagens de trabalho, com o sofrimento corroendo o seus dias, Gonçalves Dias adoeceu. Buscou tratamento na Europa, mas teve pouca melhora. Dia 3 de novembro de 1864, o navio em que ele estava a bordo, voltando para o Brasil, naufragou na baía de Cumã, no Maranhão. O poeta foi o único a morrer. Estava bastante debilitado e não teve condição física de sair do seu leito. O Maranhão, o país e Ana Amélia choraram pela morte do poeta. Depois do luto, a vida seguiu o seu curso.

O tempo passou. Depois de quarenta anos, a sociedade maranhense se preparava para homenagear Gonçalves Dias. O Teatro Arthur Azevedo estava iluminado para uma noite memorável. Gonçalves Dias era um homem fascinante. As lembranças da história do poeta, querido e admirado, deixaram a noite muito mais bonita. Uma noite luzidia. Havia no ar um cheiro de poesia. O tempo parou para uma viagem ao passado. A inteligência, o romantismo, a dor e a paixão transbordavam dos poemas lidos. O poema mais esperado da noite foi “Ainda uma vez – Adeus!”. A cada verso, a certeza do amor. E no meio do poema, um som de soluços ecoou pelo Teatro... um choro que, apesar de discreto, chamou a atenção. As lágrimas caiam dos olhos de uma mulher. Lágrimas de uma amor guardado. Ana Amélia, já em sua terceira idade, estava lá, calejada pelo tempo, pelas dores e pela vida difícil que tivera. Ao ser identificada, abrilhantou ainda mais a noite. Foi um momento único. Ela disse que não houve um só dia que não tenha pensado em Gonçalves Dias. Em suas orações, o pedido de perdão pelas mágoas que guardara durante muitos anos. Disse, ainda, que o amor, a dor e a saudade eram suas constantes companhias. Acreditava que, quando Deus a chamasse, ela o reencontraria. Havia esperança de ser feliz e de viver além da vida. Contava com a providência Divina. Vez em quando vou ao Teatro Arthur Azevedo e, olhando para cada canto, é impossível não tentar visualizar a cena. Na Praça Gonçalves Dias, onde há o Largo dos Amores, tenho a mesma sensação. É tudo muito inspirador. Há uma energia deliciosa em cada canto desse lugar.

N essa história há muitos detalhes que não estão presentes aqui. É uma longa história que vale muito ser lida. Além de tê-la ouvido durante toda a minha infância, inspirei-me no livro "Dias e Dias" de Marisa Lajolo e no artigo do Jornalista Rozalvo Barros Júnior. Suspiro ao reler cada linha. Um misto de tristeza e felicidade me invade. Fico triste pelo desperdício, pelo amor que não foi vivido como devia ser, pelos altos muros construídos, por ter faltado um pouco de ousadia (apesar da época), pela falta de diálogo e entendimento. Porém, fico feliz, porque sei que o amor vive e nos rege. Fico feliz, ainda, pelos finais felizes que existem e pelos tantos que existirão. Aprendamos as lições do amor. Que ninguém desista de lutar pelo amor, sobretudo, quando for correspondido. Se encontrar alguém que faça o seu coração bater mais forte; se, em prece, desejar a esse alguém um infinito de felicidade; se há magia quando os olhos se encontram; se há cuidado, admiração e respeito... Preste atenção, pode ser amor. E amor, não se deve deixar passar. Não se perca. Ame hoje. É hoje que a vida acontece. 



quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Se se morre de amor...

.
Estou escrevendo um artigo sobre Gonçalves Dias e Ana Amélia (seu grande amor) que será publicado aqui em novembro. Só em novembro. Foi nesse mês, há muitos e muitos anos, que Ana Amélia esteve no Teatro Arthur Azevedo para assistir a uma homenagem feita a ele. Um amor que permaneceu por toda a vida, mas  não foi vivido em sua forma mais bonita. Uma história de dor, saudade, remorsos, sonhos despedaçados...

O poema "Se se morre de amor" é um dos mais lindos de Gonçalves Dias. Foi motivado pelo sentimento que ele nutrira por Ana Amélia.

Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra, flores e
Assomos de prazer nos raiam n'alma
Que embelezada e solta, em tal ambiente,
No que ouve e no que vê prazer alcança!

(...)

Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração - abertos,
Ao grande, ao belo;

(...)

Compreender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
De aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer que olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra, onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis d'ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar as suas vestes,
Arder por afogá-la em mil abraços.
Isso é amor, e desse amor se morre!

(...)
 Gonçalves Dias

domingo, 29 de junho de 2014

As Cartas.



Não sei em qual lugar da montanha estou, mas a fé não faltará. 


Há alguns dias, ao acordar, como de costume, falei com Deus, levantei-me e fui até a janela. Quando a abri, vi que o dia estava chuvoso. Um dia frio. Fiquei lá por alguns minutos, olhando as folhas caídas no chão molhado e ouvindo o barulho da rua. A brisa fria que vinha de encontro ao meu rosto trazia o cheiro de terra molhada, cheiro de paz. As plantas estavam cobertas de orvalho. As gotas d'água, que caiam do telhado, faziam música. Desse tipo de música que toca a alma da gente. Os pássaros estavam quietos... quase um convite a ficar quieta também no meu canto. Os pensamentos foram longe. O orvalho, o vento, os sons, os pássaros... Um dia vestido de água. Vez em quando faz bem ter dias assim. Eu sei que o sol está lá.

De repente, o cheiro de café desviou meus pensamentos. Apressei-me para o banho. Enquanto eu vestia uma roupa, meus olhos passearam pelo quarto... A velha caixinha de madeira num canto do armário pedia para ser aberta. A caixinha onde guardo as cartas que recebi de minha avó.

Sem dúvida,  era um dia para recordar. Um dia perfeito para ler cartas.  Após tomar o café e participar da conversa que acontecia na cozinha, voltei para o quarto, peguei a caixinha e acomodei-me na cama. Algumas cartas, pétalas de flores secas e um terço com algumas contas quebradas, de muitas Ave-Marias, de uma vida de oração. Os papéis velhos, amarelados pelo tempo, já impregnados com o cheiro da madeira são provas de um amor que não fenece, de um coração que ficou aqui. Testemunhas do que está gravado em outra caixinha... Esta que bate, que dói e que cabe um mundo. São provas de que a tinta das esferográficas foi além.

Minha avó morava no interior do estado e eu fui estudar na capital. Não tínhamos telefone. Nesse tempo, esse aparelho fantástico, que nos faz ouvir a voz de quem está longe, era um artigo de luxo. Na falta de telefone, nossas vozes ecoavam nos papéis e adentravam nossas almas. Eu sentia o cheiro do talco que ela usava, misturado às pétalas que enfeitavam as cartas. Era uma espécie de ritual... um desejo de perfumar a vida, as dores, as alegrias, a saudade... um jeito de criar a presença. Ainda posso ouvir a sua voz tão querida em cada palavra escrita, do jeitinho que ela sabia. Pouco sabia, mas me bastava. Não entendia muito de gramática. Entendia bem de costurar, de cuidar... um talento incrível. É um mistério o sentimento que faz com que nos encantemos por outra vida como se fosse a nossa. Que nos faz felizes como a flor que treme orvalhada. Ser alimento. Isso é grande.

Há muita beleza no ato de enviar e receber cartas.  Às vezes, as notícias eram boas,  outras vezes não. Boas ou ruins, as lágrimas sempre me faziam companhia. Nesses momentos, eu partia para onde está o meu coração, como faço agora. Entendo bem o que disse Rubem Alves: "... Cartas são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel". Isso era tudo. É tudo. Aleatoriamente, peguei uma carta. É uma carta muito especial, de um tempo de muito desânimo. Eu pensava em desistir. Estava longe de casa e ainda pouco acostumada à vida na capital. Um peixe fora d'água. Uma menina, apenas uma menina querendo voltar para aquele lugar onde era tudo mais fácil, onde havia o calor do colo materno, o conforto da segurança. Todo esse sentimento era enviado para ela através das cartas. E eu rezava para que a resposta fosse: "Volte". Pelo contrário, ela dizia: "Fique aí. E seja forte". Uma carta repleta de mil palavras de força e incentivo. Ela tinha razão. Eu sentia medo do novo, das mudanças. Chorei muito, mas fiquei e enfrentei cada medo com coragem. Tantos ensinamentos... Minha avó era uma mulher cheia de virtudes. Ler: "Minha filha, não há montanha alta demais quando botamos fé na subida. Nunca desista de lutar. Tenha coragem. Você pode", era tudo que eu precisava. Ela acreditava em mim mais do que eu. Assim, tive que aprender a acreditar também. 

Hoje, eu sei... o véu que veste a minha alma é de esperança. Foi costurado cuidadosamente pelo tempo das dificuldades, das alegrias e, sobretudo, pelas lições aprendidas em um “livro”, de único exemplar, chamado "Maria, minha avó". Nesse "livro", aprendi que o amor é isto: colocar em meu peito um coração que não é o meu... O meu está lá, está ali... E por estar, enche-me de vida.

Carrego em mim tudo o que aprendi com ela, o valor da gratidão, da  amizade, do amor, do respeito, da honestidade e da solidariedade. Minha avó falava da importância de olhar para os outros e mostrar o coração. De dar lugar ao amor, à confiança, à segurança... Ela dizia que pelo caminho eu encontraria pessoas de todos os tipos, algumas me fariam bem, outras não. E que a justiça divina não falha, que a paciência e o tempo trazem todas as respostas, colocam as coisas no lugar.

Reler cada palavra desta carta me fez recordar dos dias lindos, dos abraços, do silêncio que falava, do olhar cuidadoso. Alimentou em mim a certeza de que dias muito mais lindos virão. A certeza de que não paro aqui. Jamais desistirei de lutar. Não sei em qual lugar da montanha estou, mas a fé não faltará. Se, por qualquer que seja a razão, eu escorregar e descer um passo, em seguida subirei dois. É para o alto que vou. É para frente que caminho.

As cartas estão todas aqui... As que leio e as que sinto, guardadas em suas respectivas caixinhas...  Sempre serão lidas, sempre serão força, sempre serão voz, sempre serão luz... Testemunhas. O tempo não apaga.

E
o dia chuvoso e frio fora aquecido... Toquei as mãos daquela que é amada, que se foi, que está!

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A menina que mora em mim.


"Sonhar é uma imitação do voo. Só o verso alcança a harmonia que supera os 
contrários - a condição de sermos terra e a aspiração do eterno etéreo." Mia Couto


Dentro de mim mora uma menina. A menina que mora em mim ainda olha para o céu, à noite, e faz pedidos quando vê estrelas cadentes. Se encanta com as fases da lua. Debruçada na janela, confessa à madrugada todos os seus desejos. Tem os mais lindos sonhos... quiçá, futuro. Mas não basta sonhar. Ela quer ser sonho. Faz de cada amanhecer uma oportunidade. Ao acordar, veste sua roupa de viver... e não deixa, na cama, os sonhos. Pinta com as cores mais bonitas a luz do novo dia. Abre portas e janelas como o sol abre o dia. Faz história. Lê histórias. Transforma livros em fragatas. Viaja. Ela ama as palavras... e, com o óleo da paciência, unge cada uma delas. Uma menina corajosa, ousada, forte... eu sou timidez e fragilidade. Cultiva, na alma, um lindo e perfumado jasmineiro. Carrega nas mãos o perfume das flores. Sobe nas árvores mais altas... e, quando cai, os olhos permanecem no céu. É nesse Azul que ela mergulha. Cheia de fé, segue em frente. Tenta. Recomeça. Se eu caio, fico no chão, esperando que ela me levante. Ela não tem medo. O medo é um departamento meu. A função de desacreditar, também. Ela tem a linda mania de ter esperança, de acreditar na vida, nas pessoas, nos sentimentos. Quanto a mim, às vezes, eu queria que a minha vida fosse um carro de bois... assim eu não precisaria ter esperança, apenas rodas - Como disse Fernando Pessoa em um de seus heterônimos.

Às vezes, ela fecha os olhos para ver. Seus olhos veem muito além. Enquanto os meus olhos, abertos, não veem nada. Ela cala para ouvir. Eu quero ser ouvida. Eu mantenho os meus pés no chão, mas ela tem asas. Com meus pés, junto andanças. Com suas asas, ela alcança horizontes. Encontra em cada vento um impulso para voar. Gosta de banho de rio, de mar, de chuva... Pesca, semeia, cultiva, colhe, acolhe.

Ela dança, canta. Encanta. Sempre encontra uma razão para sorrir, porque a vida assim tem mais sabor; porque a felicidade está na doçura de um abraço. Faz dos abraços um encontro perfeito. Assim é possível ter um coração no lado direito do peito. Ser o motivo de um sorriso é sinônimo de felicidade. Eu sofro por tudo e por nada. Ela vive intensamente as alegrias. Faz sorrisos, faz sol, faz dia... Eu nublo, faço chuva, anoiteço. Ela é serena. Eu sou inquieta. Sua serenidade tem mãos suaves. Minha ansiedade tem pés ligeiros. Ela reza, eu rezo. Rezamos. E nos contrários nos entendemos.

Ela não quer o pote de ouro, ela quer o arco-íris. Eu quero a oitava cor. Para ela, o amor é sagrado e, assim como a fé, tira as montanhas de seus lugares. E move todo o céu. Quer ser chama. Quer ser círio. Ser o eterno círio de um coração é o que ela espera da alegria. Segurar uma mão é tudo o que ela espera na caminhada... porque de mãos dadas as paisagens ficam mais bonitas, porque dar de si, é o ápice da caridade, do amor, da amizade.

As qualidades são dela. Os defeitos são meus. Um deles é, vez em quando, esquecer de acordá-la. Há dias assim. De repente, olho para o meu corpo, vejo as roupas antigas, sem cores e percebo que nesse dia me vesti sozinha. Ela estava dormindo. Os dias mais alegres são aqueles em que tomo de empréstimo as suas roupas, são aqueles em que ela faz trança em meus cabelos e me perfuma com jasmim. Com ela o dia é canção, é força, é porta aberta. Se a não ouço, os tropeços são fáceis.

Cuidadora das minhas imperfeições. Cuidadora de mim. Vou aprendendo com ela... a menina que mora em mim. Ora caminha comigo, ora voo com ela. Os quereres são nossos. Uma partilha de aspirações.

Sem ela, nada sou. Sem mim, ela dormiria por toda a vida. Enquanto ela viver, viverei... viveremos.